Thursday, September 29, 2022

Governo chinês levou jornalistas portugueses a Xinjiang: ninguém viu nada de mal e até participaram em vídeos de propaganda

 set22

O regime chinês levou jornalistas de Macau à região de Xinjiang, dias depois da publicação do relatório da ONU que levanta suspeitas de crimes contra a Humanidade. A maioria dos convidados recusou-se a falar ao Expresso sobre a viagem. Quase nenhum escreveu sobre a viagem nos seus órgãos de comunicação, mas participaram em vídeos de propaganda do regime comunista. Ali, os jornalistas só têm elogios para o que se passa em Xinjiang. Presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM) desvaloriza o caso

Patrulha da guarda fronteiriça chinesa a jurar lealdade à bandeira do Partido Comunista, em Xinjiang

future publishing/getty images

Xinjiang é assunto sensível. No final de agosto um relatório das Nações Unidas referia possíveis crimes contra a Humanidade naquela região autónoma chinesa, confirmando alertas de organizações de defesa dos direitos humanos, mormente sobre a repressão da minoria muçulmana uigur. A ONU pede à comunidade internacional para agir — e com urgência — face a acusações de tortura e violência sexual. Pequim fala de farsa” engendrada pelo Ocidente. 

Não é fácil pisar o solo de Xinjiang. Pouco depois da divulgação do relatório, o regime autoritário chinês convidou para uma visita à região um grupo de jornalistas de Macau que trabalham para meios de comunicação em língua portuguesa e inglesa. Quase nenhum publicou reportagens sobre a viagem, mas vários participaram em vídeos do Governo chinês a elogiar o desenvolvimento de Xinjiang. Sobre os uigures, nem uma palavra.

Ao Expresso, quase nenhum quis comentar a viagem de seis dias. Da Lusa, agência noticiosa portuguesa, nem a delegada de Macau, Elsa Jacinto, nem a diretora, Luísa Meireles, prestaram declarações. O mesmo aconteceu com os diretores Gilberto Lopes, da Rádio Macau; Guilherme Rego, do “Plataforma Macau”; Carlos Morais José, do “Hoje Macau”; e José Carlos Matias, da “Macau Business”.

João Francisco Pinto, à frente do Canal Macau da TDM, não respondeu a tentativas de contacto. Depois de publicado este artigo, contactou o Expresso para explicar que enviou três jornalistas à viagem em causa, na qual ele próprio não participou. “Nenhum deles fez qualquer declaração a órgãos de comunicação social da província de Xinjiang ou participou em vídeos oficiais de autoridades da República Popular da China”, assegura.

Paulo Coutinho, do “Macau Daily Times”, respondeu com uma recusa. “Por enquanto, não quero prestar declarações. Ainda estou a refletir sobre tudo o que me foi dado a ver, de Karamai a Tacheng e a Urumqi, para fazer a minha própria reportagem”. Faltou o “Tribuna de Macau”, que, segundo o diretor, Rocha Dinis, não se juntou à comitiva por falta de pessoal.

Prestaram declarações ao Expresso os jornalistas Dinis Chan, do “Ponto Final”, e Harald Brüning, do “The Macau Post Daily”. “Falámos com os membros do Governo sobre vários temas. Mas não fiz perguntas sobre acusações nas quais não acredito”, diz Brüning ao Expresso.

Sobre a liberdade para decidir onde ir e com quem falar, explica que Xinjiang é do tamanho da Europa Ocidental, para ir de uma cidade a outra tarda-se quatro a cinco horas e um distrito é do tamanho de Portugal. Ri-se e sublinha: “Não estamos na Europa. Estamos na China. Éramos convidados. Não se diz a quem nos convida onde se quer ir. Eu, como outros jornalistas portugueses, vivemos na Ásia há muito tempo. Conhecemos bem os valores. Percebeu a mensagem?”

“Os brancos continuam a pensar que dominam o mundo”

Não é a primeira vez que o jornalista alemão radicado em Macau integra delegações à China a convite oficial. Nem sempre vai, mas desta vez não hesitou, por ser “uma excelente oportunidade”. “Foi a melhor viagem da minha vida”, realça.

A Amnistia Internacional fala em “graves violações de direitos humanos em Xinjiang”

A Amnistia Internacional fala em “graves violações de direitos humanos em Xinjiang”

ozan kose

Ainda sobre a liberdade, neste caso a de expressão, garante que em 40 anos na Ásia nunca foi pressionado — direta ou indiretamente — sobre o que podia publicar acerca de visitas. Deixa um conselho “aos brancos”, como lhes chama. “Conhece o poema ‘The White Man’s Burden’, de Kipling? Devia lê-lo. Essa é a vossa atitude. Os brancos continuam a pensar que dominam o mundo. Há valores asiáticos. Há valores africanos. Há diversos valores no mundo. Devia olhar dessa perspetiva.”

No editorial sobre a estada em Xinjiang, referia que a viagem tinha sido uma expressão de solidariedade dos jornalistas locais com o povo da região, “difamada por separatistas exilados e políticos anti-China no Ocidente”. E garante que “as alegações de genocídio são absurdas”. 

Chan também assegura nunca ter recebido indicações ou avisos sobre o que publicar.”Mas claro que tudo o que nos mostraram é com o objetivo de provar que está tudo bem.” Refere como exemplo a exposição sobre terrorismo e extremismo que viu em Urumqi, capital de Xinjiang. “Havia fotos sensacionalistas e sangrentas, todas de meios chineses. O intuito de Pequim é justificar os métodos. Não é apenas a China que tem tomado medidas para agir contra o terrorismo e extremismo. Os Estados Unidos fazem o mesmo.”

O jornalista do “Ponto Final”, que integrou outras delegações dirigidas à comunicação social, fez perguntas. Procurei perceber o critério, quem é enviado para esses campos de educação, mas não me responderam de forma muito concreta, apenas me disseram que as autoridades decidem.”

Um militar mede a temperatura a um idoso uigur, na cidade chinesa de Kuqa, província de Xinjiang

Um militar mede a temperatura a um idoso uigur, na cidade chinesa de Kuqa, província de Xinjiang

david liu / getty images

O que os jornalistas viram

A ONU estima que mais de um milhão de pessoas tenha sido levada para “centros de reeducação”. Os campos e o fabrico de algodão serão um dos palcos do trabalho forçado. O grupo de jornalistas levado a Xinjiang pelo regime de Pequim intervém num dos vídeos publicados nas páginas oficiais do Governo chinês, em imagens captadas entre Urumqi e Karamay.

“É completamente diferente. Não há pessoas. Explicaram-nos que é tudo feito pelas máquinas. É diferente do que estamos habituados a ver no Ocidente”, refere a delegada da Lusa, Elsa Jacinto, num desses filmes. José Carlos Matias também intervém, com um ramo da planta na mão. “É a primeira vez que estou aqui. Estou a desfrutar bastante do tempo, do ambiente. Também é a primeira vez que estou num campo de algodão. Espero aprender mais sobre o desenvolvimento económico e social de Xinjiang.”

Noutro vídeo, e para resumir a visita a Tacheng, cidade adjacente ao Cazaquistão — país visitado há pouco pelo Presidente chinês, Xi Jinping —, é Carlos Morais José quem fala. “O que vejo é um reforçar da identidade, consubstanciada em diversas culturas, e isto é o futuro do mundo. Cada vez mais partilha, sem prejuízo de se perder cada uma. É o que vejo aqui, forte multiculturalismo. Não vi nenhum genocídio cultural. Pelo contrário”, assegura o diretor do “Hoje Macau”.

“Vejo que há apoio do Governo a todas as identidades locais”, prossegue. E estima que todas essas nacionalidades recebem “apoio maior do que se não houvesse um Governo central”.

Trabalhadores passam do lado de fora do que é apresentado como centro de formação profissional em Dabancheng, na região autónoma de Xinjiang. Organizações de defesa dos direitos humanos garantem tratar-se de uma prisão

Trabalhadores passam do lado de fora do que é apresentado como centro de formação profissional em Dabancheng, na região autónoma de Xinjiang. Organizações de defesa dos direitos humanos garantem tratar-se de uma prisão

reuters

Já o presidente da AIPIM recorda que as visitas a convite das autoridades ao país remontam aos tempos em que Macau ainda era administrada por Portugal. José Miguel Encarnação realça que a prática não é exclusiva da China e considera-a mais uma visita, apesar do destino e das paragens. “É normal que os Estados convidem jornalistas para visitarem províncias ou se acompanhem governantes ao estrangeiro. Temos é de ser profissionais e saber filtrar os factos”, sublinha.

Governo de Macau em silêncio

O relatório sobre a região chinesa divulgado pelo Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, no último dia do mandato de Michelle Bachelet, 31 de agosto, refere que “a extensão da detenção arbitrária e discriminatória de membros dos uigures e de outros grupos predominantemente muçulmanos […] pode constituir crime internacional, incluindo contra a Humanidade”.

O que é genocídio os Estados Unidos e outras nações, além de analistas e organizações de Direitos Humanos, não passa, para a China, de reforço da segurança para a “luta contra três males”: separatismo, terrorismo e extremismo.

Até à data de publicação do artigo, nenhum meio de comunicação tinha reportagens ou notícias sobre a visita a Xinjiang, exceção feita ao editorial do “Macau Post” e noticiário do Canal Macau. Na peça, o pivô dizia que “o objetivo da visita era que os jornalistas tomassem contacto com a realidade da região, e o desenvolvimento económico e tecnológico”. Acrescentava que “a delegação tinha ficado impressionada com a digitalização da cidade de Karamai”. O Governo de Macau, que também integrou a comitiva, representado pelo Gabinete de Comunicação Social, não respondeu atempadamente às questões do Expresso.

Este artigo foi revisto na manhã de 29 de setembro para incluir explicação enviada, depois da sua publicação, por João Francisco Pinto, diretor do Canal Macau da TDM

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